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Dinâmicas Relacionais Destrutivas: Comparando Abuso e Toxicidade

Nos últimos anos, expressões como relacionamento tóxico e abuso psicológico se tornaram parte do vocabulário popular. As redes sociais estão cheias de vídeos, threads e listas de sinais para identificar relações doentias. Essa popularização tem um lado positivo: falar sobre saúde emocional deixou de ser tabu. Mas também traz o desafio do uso indiscriminado dos termos que gera confusão, banaliza conceitos clínicos e, muitas vezes, impede que as pessoas reconheçam a gravidade de certas situações.


Dizer que “tudo é abuso” ou que “todo mundo é tóxico” cria um hábito perigoso. Pode levar pessoas a diagnosticarem injustamente parceiros, amigos e familiares ou, no extremo oposto, pode minimizar situações graves, já que a palavra perde força pelo uso exagerado.

A verdade é que existe uma diferença fundamental entre toxicidade e abuso — e ela importa. Importa porque determina o nível de risco, as estratégias de proteção e, em alguns casos, até a necessidade de intervenção legal. Importa porque ajuda a compreender que nem todo conflito é violência, mas também que violência não se resume a agressão física.


Neste artigo, vou aprofundar esse tema com base científica e linguagem acessível. O objetivo não é promover rótulos fáceis, mas oferecer clareza e ferramentas para que você possa enxergar sua realidade com mais precisão. Saber nomear e agir é o que pode salvar sua autonomia, sua saúde mental e, em casos mais graves, até sua vida.


Entendendo o Abuso

O abuso é mais do que um episódio isolado de agressão, é um padrão relacional de poder e controle. Quando falamos em abuso, estamos nos referindo a um conjunto de comportamentos intencionais e direcionados a uma vítima específica, com o objetivo de enfraquecer sua autonomia, subjugar suas escolhas e, muitas vezes, remodelar sua percepção da realidade. Diferente de uma discussão comum ou de um desentendimento pontual, o abuso não é algo que “escapa sem querer”, ele é repetitivo e consciente, ainda que o agressor justifique ou racionalize suas ações.


A psicóloga Lenore E. Walker foi pioneira em descrever, em 1979, o chamado Ciclo da Violência, um modelo que permanece como referência até hoje para entender como o abuso se estabelece e se perpetua. Esse ciclo é formado por quatro fases que se repetem e se retroalimentam, criando uma espécie de armadilha emocional para a vítima. Na primeira fase, chamada de tensão crescente, o ambiente emocional se torna instável. Pequenas críticas, ameaças veladas e silêncio hostil criam um clima de ansiedade e medo, fazendo com que a vítima viva em estado de alerta, tentando prever e evitar a explosão que parece iminente.


A segunda fase é marcada pelo incidente abusivo em si. É quando ocorre a violência aberta, seja ela verbal, psicológica ou física. Esse é o momento das humilhações, dos xingamentos, da destruição de objetos ou das agressões corporais. O impacto emocional é devastador, gerando medo intenso, sensação de culpa e, muitas vezes, paralisação diante do que aconteceu. Logo depois, vem a fase da reconciliação, também chamada de “falsa paz”. O abusador pede desculpas, promete mudar, se mostra carinhoso e atencioso, muitas vezes de forma tão convincente que a vítima sente alívio e renova a esperança de que “dessa vez será diferente”.


Na fase seguinte, a calmaria aparente, tudo parece ter voltado ao normal. A vítima volta a acreditar no relacionamento e utiliza esse momento para justificar permanecer nele. Mas essa fase não é uma resolução real; ela é apenas o intervalo antes que a tensão se acumule novamente e o ciclo recomece. Com o tempo, cada repetição do ciclo tende a ser mais intensa e a reduzir ainda mais a resistência da vítima, criando um vínculo emocional que se assemelha ao que os pesquisadores Dutton e Painter (1993) chamaram de traumatic bonding, ou vínculo traumático. Essa alternância entre dor e recompensa é tão poderosa que funciona como um reforço intermitente, um dos mecanismos mais eficazes para manter comportamentos, descrito extensivamente pela análise do comportamento e pela neurociência.


O resultado desse processo contínuo é devastador para a saúde mental e física da vítima. A exposição repetida ao abuso pode causar ansiedade generalizada, depressão, sintomas de estresse pós-traumático e dificuldade para confiar em outras pessoas. Neurobiologicamente, o corpo passa a viver em estado constante de alerta, liberando cortisol em excesso, o que afeta sono, memória, imunidade e regulação emocional.


É por isso que sair de uma relação abusiva é tão difícil. Não se trata de falta de força de vontade ou de gostar de sofrer, como muitos julgam. Trata-se de um condicionamento emocional profundo, mantido por medo, esperança e dependência. Compreender que o abuso é um processo contínuo, e não um ato isolado, é fundamental para romper o ciclo, reconstruir a autonomia emocional e recuperar a capacidade de escolha.


Entendendo a Toxicidade

Se o abuso é um ato intencional e direcionado, a toxicidade se manifesta como um padrão relacional contínuo, que muitas vezes não nasce de uma vontade consciente de ferir. A pessoa tóxica, na maioria dos casos, não acorda pela manhã decidida a causar sofrimento; ela apenas repete comportamentos aprendidos, reage a suas próprias inseguranças ou busca proteger o próprio ego. Ainda assim, o impacto sobre quem convive com ela é real, profundo e cumulativo.

A toxicidade se caracteriza por um conjunto de atitudes que, repetidas ao longo do tempo, invalidam, diminuem ou desgastam emocionalmente o outro. São exemplos comuns, as críticas disfarçadas de brincadeira, ironias que minam a autoestima, competição velada, manipulação passivo-agressiva e falta de reconhecimento. Em muitos casos, essas atitudes são justificadas como “jeito de ser” ou “sinceridade demais”, mas, na prática, funcionam como uma forma de colocar o outro em posição de inferioridade.


Diferente do abuso, a toxicidade tende a afetar várias pessoas ao redor de quem a manifesta, colegas de trabalho, familiares, amigos, parceiros amorosos, e não apenas um alvo específico. Isso porque sua origem geralmente está ligada a estruturas de personalidade, crenças internalizadas e mecanismos de defesa. Pessoas tóxicas podem agir assim para se proteger de críticas, evitar sentimentos de vulnerabilidade ou manter uma sensação de superioridade que sustente sua autoimagem.


Os impactos da toxicidade são sutis, mas perigosos. Com o tempo, a vítima pode começar a duvidar do próprio valor, sentir-se cronicamente exausta e incapaz de se posicionar. Essa erosão da autoestima é um dos efeitos mais comuns e também um dos mais difíceis de identificar, justamente porque não há um evento único para apontar, mas uma sequência de pequenas microagressões. A relação tóxica muitas vezes não causa um trauma agudo, e sim um desgaste emocional crônico, que drena energia e reduz a capacidade de manter relacionamentos saudáveis.


A boa notícia é que, diferentemente do abuso consolidado, a toxicidade pode ser transformada. Quando há consciência, abertura para feedback e disposição para mudar, é possível trabalhar esses padrões, seja individualmente, seja em contextos de terapia ou desenvolvimento emocional. Isso exige que tanto a pessoa que manifesta comportamentos tóxicos quanto aquela que sofre com eles reconheçam a dinâmica e escolham interromper o ciclo de desgaste.

Reconhecer a toxicidade é necessário não apenas para se proteger, mas para decidir se vale a pena investir no relacionamento. Nem toda relação tóxica precisa terminar, muitas podem se tornar mais saudáveis quando os envolvidos estão dispostos a amadurecer. Mas ignorar o problema significa aceitar que a corrosão emocional continue, até o ponto de comprometer sua autoestima e bem-estar.


Diferenças-Chave

Embora abuso e toxicidade sejam frequentemente mencionados no mesmo contexto, tratam-se de fenômenos distintos, com mecanismos, intensidades e impactos diferentes. Reconhecer essas diferenças não é apenas um exercício semântico, mas uma questão de sobrevivência emocional e, em muitos casos, física.


O abuso é um padrão direcionado e intencional de controle. Ele opera como uma engrenagem que prende a vítima em um ciclo previsível: tensão crescente, explosão, reconciliação e calmaria. Cada repetição aprofunda o vínculo traumático, tornando a vítima mais dependente e menos capaz de romper o ciclo. Estudos mostram que cerca de metade das pessoas já experienciaram algum tipo de abuso psicológico por parceiro íntimo ao longo da vida, o que o torna a forma mais prevalente de violência relacional. Pesquisas também indicam que o abuso psicológico pode causar impactos tão graves quanto o abuso físico, sendo fortemente associado a depressão, ansiedade, sintomas de estresse pós-traumático e até doenças físicas crônicas, como dores somáticas, fadiga persistente e distúrbios gastrointestinais. Em alguns estudos longitudinais, o abuso verbal na infância mostrou-se preditor mais potente de problemas de saúde mental na vida adulta do que o abuso físico isolado, aumentando em até 64% o risco de depressão e ansiedade persistentes.


A toxicidade, por outro lado, se manifesta como um padrão de microagressões repetidas, frequentemente não intencionais. São críticas disfarçadas de humor, comparações constantes, manipulações sutis, passividade punitiva. Esse padrão tende a corroer lentamente a autoestima e a segurança emocional, gerando um quadro de desgaste crônico. Pesquisas apontam que pessoas expostas a ambientes relacionais tóxicos relatam maiores níveis de estresse basal, pior qualidade de sono e queda na percepção de bem-estar geral. Embora os efeitos possam ser menos dramáticos e mais difíceis de detectar no início, seu acúmulo gera vulnerabilidade emocional, sensação de inadequação e maior predisposição a quadros ansiosos e depressivos.

A principal diferença está no mecanismo psicológico. O abuso funciona com picos de sofrimento intenso, alternando violência e reconciliação, o que cria um condicionamento emocional viciante, semelhante ao reforço intermitente descrito pela análise do comportamento. A toxicidade opera de forma mais difusa, criando um estado de tensão constante, porém menos explosivo. Em termos neurobiológicos, ambos ativam o eixo do estresse, mas o abuso mantém o organismo em hipervigilância extrema, enquanto a toxicidade gera um estado prolongado de alerta de baixo nível, capaz de desgastar o sistema nervoso.


Essas diferenças são cruciais para a intervenção. Situações de abuso exigem planos de segurança, documentação de incidentes, possível apoio jurídico e afastamento imediato para proteção física e emocional. Já relações tóxicas podem, em muitos casos, ser transformadas com conscientização, comunicação assertiva e terapia individual ou de casal, desde que haja disposição para mudança. Ignorar a toxicidade leva ao esgotamento emocional e ao risco de evolução para um padrão abusivo mais estruturado; minimizar o abuso, por outro lado, coloca a vítima em risco real de dano grave ou permanente.


Portanto, compreender onde termina a toxicidade e começa o abuso é uma habilidade de sobrevivência.


Estratégias de Intervenção e Quebra de Ciclos

Identificar abuso ou toxicidade é uma etapa diagnóstica; a fase seguinte exige planejamento estruturado. Na literatura científica, a interrupção de padrões abusivos ou disfuncionais requer um conjunto de medidas que combinam avaliação de risco, fortalecimento de recursos pessoais e sociais e intervenções terapêuticas ou legais quando necessário.


O primeiro eixo de ação é a documentação objetiva do padrão. Relações abusivas ou altamente tóxicas tendem a distorcer a percepção da vítima por meio de gaslighting e manipulação emocional. Estudos sobre violência doméstica recomendam o uso de registros datados, como diários, capturas de mensagens e anotações de incidentes, para identificar frequência, intensidade e gatilhos (Herman, 1992; APA, 2020). Esse material é útil tanto para análise clínica quanto para eventual suporte jurídico.


O segundo eixo é a restauração da rede de apoio. A literatura mostra que isolamento social aumenta o risco de manutenção de relacionamentos abusivos e piora indicadores de saúde mental (Dutton et al., 2006). Estratégias incluem reaproximação de familiares de confiança, amigos e grupos de suporte, bem como participação em programas comunitários ou institucionais de acolhimento, que funcionam como fatores protetores.


O terceiro eixo é a intervenção psicológica estruturada. Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) apresenta evidências robustas na redução de sintomas de TEPT, depressão e ansiedade associados ao abuso (Foa et al., 2005). Para casos de trauma complexo, protocolos como EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing) e Terapia de Esquemas demonstram eficácia na reestruturação cognitiva e emocional. Em situações de toxicidade, intervenções psicoeducativas, treino de habilidades sociais e terapia de casal podem ser úteis quando há engajamento das partes envolvidas.


O quarto eixo envolve planejamento de segurança em casos de risco. É recomendado mapear locais seguros, preparar rotas de fuga, identificar contatos de emergência e manter documentos essenciais acessíveis. No Brasil, a Central 180 oferece orientação gratuita e sigilosa sobre medidas protetivas e canais de denúncia.


Por fim, o processo de restauração envolve reconstrução funcional da autonomia, com foco na retomada de rotinas, metas de vida e reintegração social. O tratamento deve contemplar a recuperação da autoestima, a redução da hipervigilância fisiológica e a prevenção da revitimização, um fenômeno bem documentado em estudos de violência de gênero.


Sinais de Alerta

Para apoiar a triagem inicial, pode-se considerar os seguintes indicadores: medo persistente ou estado de alerta na presença do outro; necessidade frequente de justificar ações ou pedir permissão para atividades cotidianas; invalidação sistemática de emoções e opiniões; isolamento progressivo de redes de apoio; sintomas físicos recorrentes de estresse: insônia, taquicardia, dores crônicas.

A presença de múltiplos itens indica necessidade de avaliação profissional e, em alguns casos, intervenção de segurança imediata.



Referências Bibliográficas

American Psychological Association. (2020). Guidelines for Psychological Practice With Women and Girls. APA.

Dutton, D. G., & Painter, S. (1993). Emotional attachments in abusive relationships: A test of traumatic bonding theory. Violence and Victims, 8(2), 105–120.

Dutton, M. A., Green, B. L., Kaltman, S. I., Roesch, D. M., Zeffiro, T. A., & Krause, E. D. (2006). Complex trauma and PTSD in battered women: Implications for health care practitioners. Violence Against Women, 12(8), 801–828.

Foa, E. B., Keane, T. M., Friedman, M. J., & Cohen, J. A. (2005). Effective Treatments for PTSD: Practice Guidelines from the International Society for Traumatic Stress Studies. Guilford Press.

Fuller, K. A. (2017). Signs of toxic relationships and their impact on mental health. Psychology Today.

Glass, L. (1995). Toxic People: 10 Ways of Dealing With People Who Make Your Life Miserable. St. Martin’s Press.

Herman, J. L. (1992). Trauma and Recovery: The Aftermath of Violence—From Domestic Abuse to Political Terror. Basic Books.

Norman, R. E., Byambaa, M., De, R., Butchart, A., Scott, J., & Vos, T. (2012). The long-term health consequences of child physical abuse, emotional abuse, and neglect: A systematic review and meta-analysis. PLoS Medicine, 9(11), e1001349.

Prime Behavioral Health. (2023). How toxic relationships affect your mental health. Prime Behavioral Health Blog.

Walker, L. E. (1979). The Battered Woman. New York: Harper and Row.

Whitbourne, S. K. (2019). Toxic people: How to identify and handle them. Verywell Mind.

World Health Organization. (2012). Understanding and addressing violence against women. Geneva: WHO.


Russo, G. C. (2025). Dinâmicas Relacionais Destrutivas: Comparando Abuso e Toxicidade. Giulia Russo | Psicologia Científica, Brasil. https://giuliarusso.com.br/

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